Como primeira resenha literária do blog, escolho o encanto e tristeza de Macabéa. A hora da estrela.
Desencontre-se…
LISPECTOR, Clarice. “A hora da estrela”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, 1ª edição.
A hora da estrela, de Clarice Lispector, começa por dizer que “tudo no mundo começou com um sim”. “Sim” este que se incorpora na própria ação de escrever o texto. Rodrigo S.M, narrador onisciente da história, diz “sim” a existência de Macabéa ao resolver relatá-la, ao enxergar vida no seu viver tão ralo: “Se essa história não existe, passará a existir”. Ele acredita ser sua obrigação contar sobre essa moça Macabéa entre milhares dela. Pensa ser dever seu revelar-lhe a vida, “porque há o direito ao grito”.
Então, eis que ele grita.
Sendo narrador e, mais do que isso, quase que personagem principal do relato, Rodrigo S.M inicia o livro fazendo reflexões e indagações sobre a existência e o ato de escrever. “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mão de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama”. O narrador se descreve como um homem que tem mais do que os que passam fome e acredita que isso faz dele um desonesto. Diz não ter classe social, de tão marginalizado que é. Por isso e pelo seu próprio relato, percebe-se que ele considera-se dispensável ao mundo.
Rodrigo S.M, que a todo o momento entremeia o relato com a sua subjetividade, aparece no texto às vezes como uma consciência: convida ao leitor a sair de si para ver como é às vezes o outro. Diz fazer o papel da válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Pode ser visto também como o deus da vida de sua personagem, “devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e será a salvação”.
Ele diz que a história tem que ser escrita por um homem, pois uma mulher iria se emocionar e fazer um relato piegas. Afirma saber tudo o que vai escrever, mesmo nunca o tendo vivido, por ter pegado, numa rua do Rio de Janeiro, no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina: Macabéa.
A personagem de Macabéa é descrita como alguém resignada, que aceita tudo sem fazer perguntas. Adivinha que não havia respostas. “Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim”. Também aparece como uma pessoa quase invisível, tanto para os outros (“ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio”) quanto até para si mesma, permeada por uma falta dela mesma (“só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim.”). É construída como um ser que não têm. (o quê?) Apenas não têm.
Com linguagem simples para captar a delicada e vaga existência da moça, Rodrigo S.M inicia o relato da vida de Macabéa, entretanto, não deixa de permear o texto com suas impressões e interrogações. Chega até mesmo a declarar seu amor pela moça: “Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo”.
Macabéa, de 19 anos, só estudara até o terceiro ano primário. Ganhara de uma tia beata um curso ralo de como bater à maquina e assim tinha uma dignidade: embora não fosse boa no que fazia, era datilógrafa.
Quem realmente era, Macabéa jamais soube e “se tivesse a tolice de se perguntar, cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu? ‘ provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto”. Então a moça só se conhecia por ir vivendo à toa. Jamais problematizava o seu existir, a não ser por um dia em que se fizera a trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou de pensar.
Macabéa trabalhava como datilógrafa numa firma de representantes de roldanas, que fica na Rua do Lavradio. Quando viera para o Rio ainda vivia com a tia beata, pessoa que a criara desde a morte dos pais, aos dois anos de idade, no sertão de Alagoas, onde a moça nascera. Mais tarde, foram morar em Maceió e, depois, não se sabe o porquê, mudaram-se para o Rio. Após a morte da tia, Macabéa vai viver na Rua do Acre, próxima do cais do porto, “entre as prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó”. Morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças (todas Marias) balconistas das Lojas Americanas.
A vida de Macabéa resumia-se assim “Rua do Acre para morar, Rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto para ir espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração, um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo”.
A nordestina achava que se tivesse gosto por alguma coisa na vida cairia em grave castigo e correria até risco de morrer. Então, para defender-se da morte, vivia menos, gastava pouco de sua vida para esta não acabar. Era calada por não ter o que dizer, mas gostava de ruídos, eram vida. Acreditava em tudo o que existia, e no que não existia também. Gostava de ficar triste, pois esse momento de sofrimento era seu encontro com ela mesma. Domingo acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. Tinha saudade da infância. Um de seus momentos de êxtase foi ver o arco-íris no cais. Era doida por soldado: estremecia de prazer pensando se ele iria matá-la. Tinha dois luxos na vida, ir ao cinema uma vez por mês e pintar as unhas da mão de vermelho grosseiramente escarlate. Quando acordava não sabia quem era. Depois pensava com satisfação: Sou datilógrafa, virgem e gosto de coca-cola. Não acreditava em morte (pois não estava viva?). Gastava suas horas ouvindo a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”. Adorava anúncios, recortava-os dos jornais velhos do escritório e colava-os no álbum. Acreditava em anjos, e por acreditar eles existiam. Às vezes tinha enjôo para comer, porque quando era pequena soubera que havia comido gato frito. Nunca recebera presentes. Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas.
Na manhã do dia 7 de maio, Macabéa viveu o êxtase inesperado: no meio da chuva abundante encontrou o primeiro “namorado” de sua vida. Seu nome era Olímpico de Jesus, também nordestino, metalúrgico e muito ambicioso.
Nesse ponto na narrativa há a exemplificação clara da humildade e da falta de palavras de Macabéa. O segundo ponto pode ser identificado quando a moça, por temer que o silêncio acabasse com seu namoro, puxa um assunto dizendo gostar de parafusos e pregos. Depois, mostrando a sua humildade, Macabéa chega a pedir desculpa pela chuva que insiste em cair em todos os seus encontros com Olímpico, como se acreditasse que a culpa da água cair do céu fosse realmente dela.
Olímpico não mostrava satisfação nenhuma em namorar Macabéa, não via nela nenhuma chance de ascensão social. Quando conheceu Glória, colega de trabalho de Macabéa, sentiu que ela tinha classe. Sendo assim, Olímpico troca Macabéa por Glória, com quem ele acha que terá mais chances de ‘subir na vida’, já que ela era mais bonita e muito mais esperta do que Macabéa e, além disso, tinha o pai açougueiro, o que sugeria ao Olímpico a possibilidade de melhora financeira.
Glória, talvez com remorso por ter roubado o namorado de Macabéa, sugeriu que ela fosse a uma cartomante sua conhecia. Emprestou-lhe dinheiro e disse que Madame Carlota, a cartomante, talvez indicar-lhe-ia um jeito de arrumar um novo namorado.
Macabéa vai então à cartomante. Primeiro, esta lhe faz confissões de seu passado de prostituta e cafetina. Depois, ao constatar o quão horrível era a vida de Macabéa (o que assusta a datilógrafa, já que ela nunca pensara que sua vida fosse tão ruim) prediz-lhe um ótimo futuro. A vida de Macabéa, segundo a cartomante, iria mudar no momento que ela saísse daquela consulta. Iria conhecer um estrangeiro rico chamado Hans, loiro de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos e iria se casar com ele. Macabéa então vive o ponto alto de sua existência, estava com esperança. Chegara até a conhecer a paixão: estava apaixonada por Hans.
Saiu da casa da cartomante mudada, “grávida de futuro”. A cartomante havia lhe decretado “sentença de vida”. Seria feliz e a felicidade viria do estrangeiro.
De certa forma, é o que acontece: ao dar o passo de descida da calçada, Macabéa é atropelada por um Mercedes-Benz. Ela pensa então que as predições de Madame Carlota já começavam a ser cumpridas, pois o carro era de luxo.
Ficou inerme no canto da rua e pensou que aquele dia era o primeiro dia de sua vida: havia nascido.
Macabéa se acomodou em posição fetal e teve a úmida felicidade suprema, “pois ela nascera para o abraço da morte”. Pronunciou a frase: “quanto ao futuro” e tivera vontade de vomitar algo luminoso: “estrela de mil pontas”.
É a sua “hora da estrela”, momento de libertação para alguém que, afinal, “vivia numa cidade toda feita contra ela”. Momento único em sua vida onde todos olhavam pra ela, ali estirada no chão. Sua vida, enfim, fora reconhecida. Macabéa passara a existir para o mundo.
Então a história termina.